segunda-feira, 2 de abril de 2012

Descoberta em casarão em Salvador pode mudar história do judaísmo no Brasil


Alexandre Lyrio / Correio da Bahia

O que para um leigo não passa de uma banheira antiga, para um judeu ortodoxo é tão importante quanto uma sinagoga - o templo sagrado dos israelitas. Por si só, a mikvé (isso mesmo, mikvé) que ilustra essa página, já seria uma relíquia. Mas e se o local onde são realizados banhos sagrados para purificação judaica for do século XVII, período auge da Inquisição católica na Bahia? E se ele foi construído em um casarão antigo, no Centro Histórico de Salvador, a uns 15 passos da Igreja de São Francisco, bem na cara do Santo Ofício? E se ele é um segredo sagrado, guardado por quase quatro séculos. Aí, além do status de relíquia, o material é capaz de mudar a História. 

Um grupo de cinco pesquisadores encontrou no Hotel Vila Bahia, no Cruzeiro de São Francisco, Pelourinho, o que pode ser a prova mais antiga da prática do judaísmo em toda a América Portuguesa. E o mais curioso: ela teria pertencido a um cristão-novo, como eram conhecidos os judeus que, por decreto do rei de Portugal D. Manuel I, em 1497 foram convertidos à força em católicos. 

O fato de ser uma mikvé já tornaria o material algo único na Bahia. Mas, se a época da sua construção coincidir com o período no qual os judeus eram perseguidos, isso a transformaria em um achado arqueológico único no país. Apenas no Recife há uma sinagoga tão antiga, construída na primeira metade do século XVII. Só que ela é do período de dominação holandesa naquela região. Diferente dos portugueses, os holandeses toleravam judeus. 

Ainda não há 100% de certeza de que a peça é uma mikvé. Mas três anos de pesquisas mostram que isso é quase certo. “Tudo leva a crer que é uma mikvé tradicional. As dimensões de comprimento e largura, a capacidade volumétrica, o reservatório de água da chuva e até a ausência de um ralo nos fazem crer que é uma mikvé”, diz a historiadora Silvana Severs, do grupo responsável pela descoberta. O equipamento do Pelourinho foi encontrado em 2006. Seu valor histórico e arquitetônico, porém, se revelou por acaso.

Uma reforma realizada no casarão fez com que o francês Bruno Guinard, diretor do hotel, promovesse a restauração do que acreditava ser um “banho português”. “Estava debaixo de escombros”, descreve Bruno. “Chamei alguns especialistas que disseram se tratar de um simples ‘banho português’. Mas senti que era algo mais e resolvi restaurar”. Dois anos depois, um judeu ortodoxo que visitava o hotel falou pela primeira vez que aquilo poderia ser uma mikvé. Depois, uma cliente do restaurante, também judia, desconfiou da construção. Essa mesma cliente, a nutricionista Berta Wainstein, em 2009, propôs que um grupo de pesquisa fosse montado. “Sou uma curiosa, uma apaixonada. Quero deixar esse patrimônio para a Bahia”, diz Berta.

Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e historiadora do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Iphan), Suzana Severs diz que falta apenas o estudo arqueológico para datar a construção, o que confirmaria se é realmente do século XVII. Aliás, a própria idade do casarão, que fica na esquina da rua da Ordem Terceira do São Francisco, conta a favor. “O imóvel é daquele período. Além do mais, confirmamos que os azulejos que recobrem a mikvé são também do século XVII”. 

Junto com a datação da peça, será preciso mais pesquisa. Há a suspeita, por exemplo, de que o primeiro proprietário do casarão chamava-se Francisco de Oliveira Porto. O nome é português, mas essa pode ter sido apenas mais uma forma de ele se proteger dos inquisidores. “Precisamos saber se ele era realmente um cristão-novo e realizava rituais judaicos”, diz Suzana. 

É preciso conhecer a força da inquisição para entender a ousadia de quem praticava o judaísmo na Bahia seiscentista. “A simples suspeita de que um indivíduo mantinha hábitos judaicos já seria motivo para ser levado à fogueira. Imagine ter uma mikvé!”, analisa Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores autoridades do país em cristãos-novos.

Ela explica que ainda assim houve quem mantivesse a tradição - foram chamados de criptojudeus. “Se havia prática judaica em Salvador? Ô, se havia. A Bahia foi o centro do judaísmo no Brasil do século XVII. Provavelmente, o homem que construiu o casarão era um criptojudeu”. Ainda que a cautela seja um dos princípios do grupo de pesquisa, o rabino Ariel Oliszemski, que é argentino e mora no Rio Grande do Sul, acredita piamente que a construção instalada no Hotel Vila Bahia se trata de um exemplar antigo do banho sagrado dos judeus. “Estou 100% convencido. Todas as características são de uma mikvé”. 

Chamado a participar dos estudos, ele explica que o banho sagrado tem diversos usos. Mas, basicamente, representa o momento de se purificar para uma etapa nova da vida.“A mulher quando vai se casar ou está ‘impura’ pela menstruação. As pessoas que se convertem ao judaísmo. Esses devem se banhar”. Independente da função, o que não se pode negar é a importância de uma mikvé. “Não existe vida judaica sem sinagoga e sem mikvé”, diz o rabino Oliszemski.

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