Ao longo de sua história, a igreja tendeu a se enxergar como extraordinária. Por exemplo, no período medieval, a igreja era um lugar extraordinário à parte do mundo, o sagrado separado do profano, o lugar de salvação, a detentora dos mistérios do céu.
A igreja continha pessoas extraordinárias: monges e freiras, padres e bispos e, acima de tudo, o Papa como representante de Cristo na terra. Essas pessoas extraordinárias eram as que tinham chamados para o ministério; todas as outras simplesmente trabalhavam. Além disso, a igreja tinha meios extraordinários: sacramentos que transmitiam graça pela operação dos próprios rituais. Enquanto monges e místicos realizavam feitos poderosos e alimentavam os leigos com alimento celestial, alguns dos extraordinários alcançavam a santidade, enquanto os comuns ansiavam pela libertação final do pecado e um vislumbre de Deus no céu.
Para aumentar o aspecto extraordinário da igreja e de seus agentes mais santos, os próprios edifícios da Igreja foram construídos com o altar extraordinário na extremidade do santuário separado das pessoas comuns por uma cerca, tela ou grade. A divisão era desenhada novamente na Eucaristia, em que aos leigos era negada a chance de participar do vinho (como o sangue de Cristo), por medo do que poderia acontecer se ele fosse derramado. A igreja cristã estava cheia de lembretes do extraordinário.
Uma das principais contribuições da Reforma e do protestantismo em geral tem sido a sua ênfase no aspecto comum da igreja. É bem certo que João Calvino aprovaria a observação de Cipriano que a igreja é a nossa mãe e que “longe de seu seio, não se pode esperar qualquer perdão dos pecados ou qualquer salvação”, ou como a Confissão de Fé de Westminster ensina: “a Igreja visível […] é o Reino do Senhor Jesus Cristo, a casa e família de Deus, do qual não há possibilidade de salvação” (25.2). A igreja é o lugar normal da graça de Deus. Entretanto, a graça de Deus não vem através de uma exibição extraordinária; em vez disso, Deus usa sua igreja comum para sustentar e nutrir crentes através de ministério, pessoas e meios comuns.
Ministério comum
Em sua igreja comum, Deus trabalha por meio do ministério comum. Os reformadores fizeram uma distinção entre os ofícios bíblicos que eram extraordinários e feitos para durar por um tempo, como apóstolos e profetas, e aqueles ofícios bíblicos que eram “comuns e perpétuos” na igreja, como presbíteros e diáconos (Ef 4.11-13; 1Tm 3.1-13; Tt 1.5-9). O ministério extraordinário de apóstolos e profetas estabeleceu a igreja (Ef 2.20), com seu ensino fundamental consistindo no cânon das Escrituras. Contudo, a partir do encerramento do cânon até o tempo presente, Deus tem usado o ministério comum e regular de presbíteros e diáconos para edificar a igreja (1Tm 3.15).
Esses presbíteros e diáconos são escolhidos pelo povo de Deus, em concordância com a própria determinação de Cristo de presentear seu povo com oficiais (At 6. 1-7,14.23; Ef 4.7-12). Longe de envolver um chamado sobrenatural ou extraordinário, o chamado para o ministério comum vem através do povo de Deus procurando entre si por homens “de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria” (At 6.3). Esses homens são separados para tomar o que receberam a respeito do evangelho e passá-lo fielmente aos outros (2Tm 2.2). E, enquanto alguns desses homens farão isso em tempo integral e recebendo uma remuneração (1Co 9.8-12; 1Tm 5.17), outros continuarão em seu trabalho diário como fazedores de tendas, pescadores, professores e médicos, mesmo enquanto pastoreiam o rebanho de Deus (At 18.1-4,24-28; 1Co 9.6–7). Presbíteros se dedicam principalmente à oração e ao ministério da Palavra, e diáconos a atender as necessidades físicas das pessoas, mas ambos trabalham para a edificação da igreja comum de Deus (At 6.1-7).
Este é o ministério normal através do qual Deus trabalha: presbíteros e diáconos exercendo o ministério comum em resposta ao chamado de Deus que vem através dos processos regulares da igreja. Mas a igreja avança a sua causa não só através de um ministério comum, mas também através de homens e mulheres comuns que vivem a vida diária no mundo e na igreja.
Pessoas comuns
Os reformadores insistiram que a causa de Deus no mundo avança através de pessoas comuns vivendo seus chamados em todas as áreas da vida. Ao confiar em Cristo durante seu trabalho diário, homens e mulheres fazem boas obras. Estas obras são tão boas quanto as de um pastor quando prega ou de um presbítero que ministra junto ao leito de uma mulher à beira da morte. Lutero coloca desta forma: “Se ele encontra o seu coração confiante de que agrada a Deus, então o trabalho é bom, mesmo que seja algo tão pequeno quanto apanhar uma palha”. O trabalho dos crentes é aceitável para Deus não por estar relacionado à igreja ou por possuir reputação do mundo; é aceitável porque é feito com fé, porque agrada a Deus, e porque Deus o usa para fazer prosperar seu mundo. Deus usa pessoas comuns como um reino de sacerdotes que representam e mediam graça comum para toda a criação.
Este sacerdócio de todos os crentes também muda nosso entendimento da vida comum na igreja. Uma vez que cada crente é um sacerdote diante de Deus unido ao sumo sacerdote, Jesus, a adoração de cada crente é significativa (1Pe 2.4-10). As orações das mulheres na sexta-feira são tão valorizadas e valiosas aos olhos de Deus quanto as orações do ministro no domingo. O ensino do contador na escola dominical é tão valorizado e valioso aos olhos de Deus quanto as palestras do professor de seminário. Todos os crentes têm a unção de Deus, todos são sacerdotes diante de Deus, todos são importantes na construção do reino de Deus (1Jo 2.27).
Isso não quer dizer que Deus não tenha dotado alguns mais do que outros, nem que Deus não tenha ordenado uma estrutura para sua igreja com os presbíteros chamados para pastorear o rebanho e estar aptos para ensinar (1Pe 5.1-5; Hb 13.7,17). No entanto, isso quer dizer que na igreja cristã comum, Deus usa homens e mulheres comuns como “sacerdotes para o seu Deus e Pai” (Ap 1.6), cuja adoração é significante e cujo trabalho é aceitável em Cristo.
Meios comuns
Quando essa igreja comum se reúne, homens e mulheres comuns servidos por um ministério comum, ela encontra Deus trabalhando através de meios comuns. O Breve Catecismo de Westminster se refere aos “meios ordinários de graça”, como a Palavra, os sacramentos e a oração. Embora estes meios comuns pareçam simples e até mesmo tolos para alguns, Deus os usa de maneiras poderosas, pois ele os faz “eficazes aos eleitos para a salvação” (P. 88; cf. 1Co 1.18-31).
Na leitura e especialmente na pregação da Bíblia, Deus trabalha para convencer e converter os pecadores e para convencer e confortar os santos, isto é, todos os crentes. Nos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor, Deus trabalha para confirmar sua Palavra e assegurar nossos corações através do trabalho de seu Espírito e da resposta da nossa fé. Em nossas orações, Deus opera em nossos corações e vidas ao oferecermos nossos desejos a Deus. Através de sua atuação, Deus faz com que esses meios comuns sejam eficazes para a nossa salvação (BCW, P. 89-91). Ou seja, eles nos confirmam e santificam em Cristo, enquanto aguardamos a nossa glorificação.
A igreja cristã comum não precisa das últimas modas para chamar os pecadores ou aqueles que estão em busca de algo. Ela precisa, em vez disso, desses meios ordinários, juntamente com a fé no Deus que utiliza esses meios. Certamente, uma das grandes crises em nossos dias é a crise de confiança e fé nos meios comuns de graça. Deus está nos chamando para lembrar mais uma vez que ele não precisa de experiências ou eventos extraordinários; antes, ele tem prazer em usar esses meios comuns para fazer sua obra na vida das pessoas.
Pois, quando o povo de Deus usa os meios ordinários, mesmo a pessoa menos instruída pode aprender a grande história da salvação, crescer em fé e graça, e servir como um sacerdote na casa de Deus. A Confissão de Fé de Westminster admite que nem tudo na Bíblia é simples ou claro para todo leitor da mesma, “mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios comuns, podem alcançar uma suficiente compreensão” das coisas necessárias para a salvação (CFW 1.7). Semelhantemente, não é preciso “revelação extraordinária” ou uma manifestação especial do Espírito para se obter garantia; pelo contrário, uma garantia infalível de salvação é alcançada “no devido uso dos meios comuns” (CFW 18.3). Tal aprendizado e segurança exigem que o povo de Deus participe de sua igreja cristã comum, dia do Senhor após dia do Senhor, a fim de usar esses meios comuns de graça.E quando nos comprometemos com esta igreja cristã comum, Deus faz coisas extraordinárias. Ele concede misericórdia e graça, ele ilumina nossas mentes e orienta nossas vontades, ele chama eficazmente e justifica, ele santifica seus filhos adotivos, e ele os leva com segurança para seu lar. Assim, Deus não nos chama para dar o primeiro lugar à conferência, podcast, livro ou revista, que são úteis, porém extraordinárias. Antes, ele nos chama a amar sua igreja cristã, bela, comprada por sangue e comum.
Fonte: Voltemos ao Evangelho
Fonte: Voltemos ao Evangelho
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente o texto e ajude-nos a aperfeiçoá-los.